18.3.08

Pegou um axé por Férrez

Texto muito loko, do Férrez, que está disponível no seu livro Niguém é inocente em São Paulo.

Pegou um axé. (Do livro Ninguém é inocente em São Paulo, Editora Objetiva)

Cheguei cedo naquele encontro.
Minhas mãos estavam suadas.
O nervosismo sempre me acompanhou, desde a época do colégio.
Quem diria que fosse terminar a faculdade tão cedo?
E ninguém acreditava que aquele garoto acanhado fosse entrar no maior jornal do país.
Também as coisas não foram tão trabalhosas.
Uns telefonemas do meu pai e pronto.
Mas saiba que eu estudei pra caralho, viu?
Trabalhou a vida inteira no meio, então nada mais justo que indicar o filhão.
Profissão filho, o caralho, eu ralei, mané.
Eu ralei pra caramba mesmo, uma vez até tive que lavar banheiro num acampamento.
Foi um dia que a empregada se injuriou com a bebedeira da gente.
Bom, só sei que estou quase indo.
Vai ser a maior aventura da minha vida.
Por isso fumei um baseado antes.
Mereço um pouquinho de emoção.
Todo dia ficar naquela redação dá nos nervos.
Tudo isso para pagar a casa na praia.
Pra ser sincero, se tivesse um maconha e uma farinha de vez em quando tava bom.
Mas fui arrumar mulher, e aí já viu, elas sempre querem alguma coisa.
O gasto com cabelo é fichinha perto da nova decoração que ela quer na casa.
As amigas fazem o mesmo com os maridos.
Meu tio me dizia que putas são mais honestas, já cobram logo adiantado.
Isso forma uma rede, onde elas querem, nós damos e ninguém é feliz.
Todas as amantes estão esperando o casamento dos seus pretendentes chegarem ao fim.
Conheci uma mina na facu que ficava molhadinha quando via homem casado.
Devia ter um museu para os vários tipos de mulher nesse mundo.
Bom, acho que é ele.Preto com roupa larga, só pode ser.
E aí, tudo bem?
Tudo bem, rapaz, demorou um pouco.
É que o relógio da rua é de outro ritmo, tá ligado?
Sei.
Odiava aquele tipo de conversa, mas por uma matéria a gente até conversa com eles.
Começamos a andar, eram tantas gírias que eu estava prestando atenção somente nos finais das frases.
Acho que eles são todos iguais.
No final, se essa reportagem vai ficar muito boa, posso até continuar e desenvolver uma pesquisa.
De repente fazer um livro, afinal esse assunto está na moda.
E melhor ainda, aprovar na lei de incentivo e já sair com o livro pago, isso é que é malandragem.
Figura estranha, não pára de falar, também são 500 anos de pobreza.
Falta de dinheiro deve gerar uma deprê neles do caralho.
Por isso eles usam também tanta droga.
Vai ver o pai deles não trabalhou que nem o meu.
Fiquei sabendo que eles ficam só bebendo e jogando bola.
A visão vai ficando pior, quanto mais a gente anda, mais barraco vai aparecendo.
Começo a me arrepender de ter insistido na idéia.
E se isso virar um pesadelo, o que vou fazer?
As ruas são inacreditáveis, buraco por todos os lados.
Bom, qualquer coisa eu digo que ajudo uma ONG.I
sso, posso até pensar em fazer uma ONG, isso dá dinheiro demais.
Posso até dizer que tenho um policial na família.
Não, melhor não, sei que eles têm ódio de polícia.
Esse rapaz não deve ser mau, afinal foi minha tinha que indicou.
Ela tem uma empregada que é vizinha dele.
E no final esse pessoal do hip hop acha que pode mudar as coisas.
Não podem nem pagar a pensão pros filhos e querem mudar alguma coisa.
E esse negócio de sistema, de jogo.
Um dia eles acordam e notam que a coisa é assim mesmo.
Pra uns terem muito, a maioria tem que se fuder sem nada.
Bom, parece que finalmente chegamos.
Bar do Zezinho é o que ele disse.
Começou a me apresentar para a rapaziada.
Firme e forte.
Tô legal e vocês?
Então, o doutor é jornalista.
Sou, sim, mas sou do bem.
Do bem era aquele tal de Tim Lopes, há, há, há.
A risada ficou generalizada, não conseguia achar graça mas comecei a rir.
Sei lá o que passava na cabeça daquela gente, estava quase todo mundo chapado.
Se eu escapasse dessa talvez nunca mais iria para um buraco daquele.
O neguinho que era meu contato pediu para que eu entrasse.
Fomos caminhando para o balcão do bar.
Lá, ele me serviu um refrigerante.
Disse que os outros caras do grupo logo estariam lá.
Fiquei mais aliviado, pelo menos não demoraria mais.
Se eles não tivessem chegado logo eu teria saído fora.
Bandas de rock são tão legais de entrevistar.
E eu pagando mó veneno ali, naquele boteco fedido.
De repente chegaram mais três neguinhos.
Eles falaram os nomes, e seguraram firme na minha mão.
Comecei a entrevista.
As primeiras perguntas foram sobre a profissionalização do rap.
Mas eu queria logo é partir para a violência.
Eles deveriam ter dezenas de histórias desgraçadas.
Eu já tinha as perguntas na ponta da língua.

O que os policiais tanto procuram aqui?

Por que eles agridem vocês?

Eles discriminam vocês pela cor?

Quem comanda o tráfico?

Mas para isso eu tinha que ir devagar.
A Edilene disse que eles são bem sistemáticos.
E eu sabia que ia conseguir que eles abrissem a boca.
Eram meio ingênuos.
E por traz daquela marra toda, só tinha quatro meninos com um sonho.
Ser um grupo de rap famoso.
Foi quando vi aquele menino com um facão nas mãos subindo a escada para o andar de cima do bar.
Pensei em perguntar, mas quando ele já estava no ultimo degrau, disse.
- Desse não sobra nada.
Comecei a tremer, mas tentei disfarçar, fiz logo várias perguntas sobre o tal do hip hop e eles foram respondendo.
Confesso que não entendia nada, só via as bocas se mexendo.
Não conseguia parar de pensar.
Era assim que eles eram.
Com certeza havia um cara seqüestrado lá em cima e aquele menino talvez fosse machucá-lo.
O que eu poderia fazer?
Tentei lembrar das propagandas do Disque-Denúncia, o número era muito comprido, não vinha inteiro na minha mente.
E se eu pegasse o meu celular, talvez até me roubassem.
Mas não me deixariam vivo, roubo seguido de morte.
Foi quando um homem se aproximou com uma serrinha de cortar cano e também subiu.
Meu Deus, coitado daquele homem, talvez fosse até um ex-amigo de faculdade.
Talvez o pai da Caru, minha esposa.
Afinal o pai dela era banqueiro.
Os negrinhos continuavam a responder às perguntas, divagando sobre a cultura da periferia.
Eu estava suando frio e quase desmaiei quando vi o homem que havia subido com a serrinha descer já todo sujo de sangue.
Tentei lembrar de algum trecho da música do Racionais que me servisse para argumentar a favor da minha vida, mas tudo sumiu da minha mente.
Eu só escutava essas músicas quando tava na balada.
Por um momento minhas vistas escureceram.
Eu fiz um grande esforço para não desmaiar.

Lembrei do meu cachorro Frank.

Dos meus peixinhos Josef e Ernesto.

Lembrei dos filmes do Woody Allen.

Eu só queria comer uma Pizza-Hut novamente.

Talvez mais uma ida ao Caribe.

O homem que havia subido com a serrinha desceu todo sujo de sangue.
Agora no fundo da minha alma eu sabia que não sairia dali com vida.
Eu ficava ouvindo Korn o dia inteiro e agora não sabia uma frase de rap para salvar minha vida.
Uma vez vi um neguinho na TV, ele era do rap também, mas não lembro o nome dele.
Os meninos do hip hop agora estavam parados à minha frente.
Certamente não entendiam o que estava acontecendo comigo.
Eu sei que estava quase entrando em choque.
Tinha que me acalmar.
Lá de cima vinha muito barulho, vozes misturadas.
Meu Deus, o que estariam fazendo com aquele homem?
Pedi para que cada um falasse um pouquinho da sua vida.
Eles começaram a contar dos primeiros empregos.
Imaginei o homem amarrado, implorando pela vida.
Não lembrava do neguinho que vi na TV, eu não tinha nome nenhum para falar, para me valorizar.
Os neguinhos agora falavam das dificuldades com a família.
Principalmente com o pai que sempre bebia.
Eu não conseguia me concentrar.
Talvez tivessem abrindo ele como se abre um porco.
Uma senhora se aproximou da escada e gritou.
- O rim é meu, o Bahia me deve.
Foi nessa hora que minhas pernas fraquejaram.
Sempre pensei que todos merecem uma chance.
Eles mereciam, eu também, aquele homem também.
Porra, justiça social do caralho, tão esquartejando o homem.
Os meninos me seguraram antes de eu cair por completo no chão.
Me arrastaram pra uma cadeira.
Eu pensando nos rins do pobre do Bahia.
O que será que esse tal de Bahia havia feito?
Talvez estupro.
Os meninos do hip hop tentavam me dar água.
Talvez tivesse roubado algum morador, ouvi dizer que eles não perdoam isso.
Eu só conseguia imaginar os rins do homem nas mãos da velha.
Fizeram eu beber um pouco.
Percebi que a água estava com açúcar.
O homem que havia subido com a serrinha e que estava sujo de sangue se aproximou.
Eu fingi não vê-lo, ele perguntou se precisava de ajuda.
Tentei pronunciar alguma palavra, mas nada saía.
Meu pequeno cachorro Frank, como ele gostava de dormir comigo.
Minha querida esposa reclamava, mas eu insistia em dormir com ele.
O último livro que estava lendo.
A prestação do carro novo dela.
Tantas coisas, talvez um filho.
Mas fariam isso comigo antes.
Os malditos iam me picar também.
Me sentia como no filme "O Massacre da Serra Elétrica".
Povo desumano.
Talvez seja por isso que eles viviam sofrendo.
Esses tipos de coisas eles traziam da África.
Lá era legalizada essa porra toda.
Meu pai dizia que eles eram amaldiçoados.
Meus amigos nunca mais me veriam.
Comecei a notar os rostos do meninos do rap de novo.
Estava voltando a mim.
Metade do pessoal do bar começou a subir as escadas, todos passavam por mim apressados.
Seria agora, era a hora que eu imaginava.
Aquela porra de lugar era como nos países onde a pena de morte é legalizada.
Todos queriam ver o homem morrer como se fosse um show.
Eu lembro de ter parado no terceiro Pai-Nosso.
Eu tinha tantos planos, talvez o meu próprio jornal.
Tanto estudo, tantos cursos, para acabar nesse buraco.
Começaram a descer, eu desmaiei de novo quando vi todo aquele sangue nas mãos deles.
Duas horas depois acordei.
Havia uma balança no balcão do bar.
Uma faca cortava a todo momento uma grande peça de carne.
Pessoas saíam da fila com sacos cheios.
Os meninos do hip hop haviam desistido da entrevista, estavam todos ao meu lado.
Era um coisa que a comunidade sempre fazia, me explicaram.
Comprar um boi e dividir as partes.

(Esse conto e mais 17 estão no Livro: Ninguém é inocente em São Paulo, editora Objetiva).

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